Nas últimas semanas, vídeos de jovens interagindo com bebês reborn — bonecos hiper-realistas confeccionados para se parecerem com recém-nascidos — têm dominado redes sociais como o TikTok. As reações, no entanto, variam entre curiosidade, encantamento e críticas agressivas. O fenômeno reacende o debate sobre limites da ficção, julgamento social e o lugar da brincadeira na vida adulta, especialmente quando associada ao universo feminino.

A jovem Y.B., moradora de Janaúba (MG), tornou-se um dos rostos mais conhecidos da comunidade reborn após publicar um vídeo em que levava seu boneco, chamado Bento, a um hospital. A cena, produzida como parte de um conteúdo fictício de “role play” — termo em inglês que designa encenações — alcançou mais de 8 milhões de visualizações. Apesar de deixar claro que se trata de ficção, a jovem passou a receber ataques e questionamentos sobre sua saúde mental.

“Eu sei que é um boneco de plástico e que não tem nada a ver com maternar. O problema é que muita gente acredita em tudo que vê na internet”, afirmou. “Gravei o vídeo enquanto visitava o bebê de uma amiga da minha mãe na maternidade.”

A reação negativa, contudo, não impediu o crescimento do seu perfil: hoje, Y.B. conta com mais de 120 mil seguidores e recebe apoio de artesãs e entusiastas do universo reborn. Segundo ela, os vídeos ajudaram a divulgar a arte, abriram portas para parcerias comerciais e se tornaram uma fonte de renda.

Bento é o bebê reborn de Y.B. e viralizou no TikTok após a jovem gravar um vídeo levando-o ao hospital • Y.B./Arquivo pessoal

Arte Reborn
O que é arte reborn?

A arte reborn surgiu na década de 1990 e envolve a criação artesanal de bonecos que reproduzem, com impressionante realismo, características de bebês verdadeiros — desde o tom da pele até pequenos detalhes como veias, cílios e texturas. O processo pode incluir mais de 30 camadas de tinta e o implante fio a fio de cabelos humanos ou sintéticos.

As criadoras desses bonecos são chamadas de “cegonhas”. Uma delas é Sara Gomes, que trabalha com arte reborn desde 2002. “É um trabalho artesanal minucioso e que vejo ajudar muitas pessoas”, relata. “Algumas clientes dizem que voltar a brincar com bonecas fez bem para a saúde emocional.”

Terapia ou fuga da realidade?

Para especialistas, a prática pode ser terapêutica em certos contextos, mas deve ser acompanhada com cuidado.

“Brincar na vida adulta não é um problema em si”, explica a psicóloga Larissa Fonseca. “Atividades lúdicas ativam áreas do cérebro ligadas ao prazer e à criatividade. Pode ser uma pausa saudável desde que não se torne uma fuga da realidade ou cause prejuízos à rotina.”

A psicanalista Fabiana Guntovitch aponta que o incômodo social com esse tipo de hobby está relacionado ao machismo estrutural. “Homens colecionam bonecos, jogam videogame, e isso é aceito. Já mulheres adultas com bonecas são vistas com estranheza, como se não tivessem o direito ao lazer.”

Sara Gomes é comerciante e artista reborn desde 2002 • Sara Gomes/Arquivo Pessoal

Ela observa ainda que existe uma diferença entre se relacionar simbolicamente com o objeto — como forma de expressão ou enfrentamento de uma dor — e acreditar que se trata de um ser real. “O problema está na intensidade e nos significados que a pessoa atribui, e não na prática em si”, avalia.

Comunidade e resistência

Influenciadoras como Mylla, de Imperatriz (MA), também produzem vídeos no estilo “role play” com bonecos reborn e afirmam que o conteúdo é voltado principalmente para o público infantil e colecionadores. Com mais de 170 mil seguidores, ela afirma que já recebeu até ameaças de morte por causa do hobby. “As pessoas julgam mulheres adultas brincando com bonecas, mas não estranham homens adultos com videogames ou carrinhos. É puro preconceito.”

Para a maioria das pessoas envolvidas na arte reborn, o universo é encarado como um espaço de afeto, criatividade e expressão emocional — muitas vezes associado à nostalgia ou à superação de traumas. O próprio nome “reborn” (renascido) carrega esse sentido simbólico.

Famosos e cultura pop

O universo reborn ganhou recentemente ainda mais visibilidade após celebridades como o padre Fábio de Melo e a influenciadora Nicole Bahls mostrarem seus próprios bonecos. Na cultura pop, o filme “Uma Família Feliz”, estrelado por Grazi Massafera, aborda a temática ao mostrar uma personagem que confecciona bonecos reborn para vender.

Com o crescimento da comunidade, cresce também a necessidade de compreensão e respeito por práticas culturais alternativas que, embora incomuns, não configuram distúrbios — e, em muitos casos, são ferramentas legítimas de expressão e cura.